O SXSW não é exatamente novo. Começou em 1987, antes da internet. Na ocasião, Roland Swenson, funcionário do jornal The Austin Chronicle, recebeu um convite dos organizadores do New Music Seminar, de Nova York, para levar uma extensão do festival de música para Austin, no Texas. Em sua primeira edição, os organizadores tinham a expectativa de receber cerca de 150 participantes. Apareceram mais de 700 pessoas de todos os cantos dos Estados Unidos, para assistir a 77 atrações musicais e 15 palestras, que eram promovidas em bares, restaurantes, lojas vazias e estacionamentos.
Desde então, o evento experimentou popularidade crescente e tornou-se um sucesso global, atraindo nomes do porte de Barack Obama, Elon Musk, Mark Zuckerberg e Oprah Winfrey.
Neste ano, o SXSW recebeu cerca de 300 mil visitantes e gerou faturamento superior a US$ 500 milhões. Chama atenção a diversificação: são 13 categorias, com destaque para música, arte, cinema, design, mídia e tecnologia. Em dez dias, mais de 4 mil eventos foram realizados pelo festival, entre apresentações, entrevistas e painéis.
Esse gigantismo tornou difícil manter um fio condutor ou dar direções para o público. Num artigo para o M&M, Pyr Marcondes vai ao âmago da questão: “O evento caiu na armadilha da sua exponencialidade temática e dela não sabe como sair.” Quando se fala de tudo e se dá voz a muitas tendências, não há como apontar rumos. E viva a democracia do SXSW!
Então, resumir as coisas mais legais que rolaram no SXSW 2023, suas principais tendências e atrações, é uma missão impossível. Cada um faz o seu menu, provavelmente diferente para cada um dos 300 mil visitantes. Nós, da RPMA, nos dividimos para assistir ao máximo de conteúdos possíveis. Mesmo assim, ao nos reunir para discutir o que cada um achou mais legal, o resultado foi uma verdadeira Torre de Babel!
Todavia, achamos um fio condutor: hoje o mundo tem alguns contextos, que envolvem seus mais de 8 bilhões de habitantes, e a maioria deles serve como pano de fundo para os eventos do SXSW. Entre os muitos contextos globais, resolvemos nos focar em três, que nos pareceram mais significativos para a maioria de nós e os que mais nos afetam:
- O desafio da diversidade e os direitos das minorias.
- O modelo autodestrutivo do mundo atual.
- A influência universal que a IA terá em nossas vidas daqui para a frente.
Com o risco de cometer uma enorme injustiça, escolhemos o evento que melhor representasse cada categoria.
No contexto da diversidade, adoramos o papo entre Chelsea Manning e Harry Halpin, ambos superespecialistas em segurança digital, falando sobre o futuro da privacidade na internet. Mas o mais legal é a história de Chelsea, que se sobrepõe ao conteúdo. Chelsea é transexual, tem 35 anos e passou sete anos na prisão, por vazar ao WikiLeaks informações confidenciais, no que foi o maior escândalo de vazamento desse tipo de dados na história dos Estados Unidos. A ex-soldado, que foi condenada a 35 anos de prisão, foi libertada em 2017.
Em 2010, enquanto servia como analista de inteligência militar, Chelsea transmitiu ao portal WikiLeaks, dirigido pelo australiano Julian Assange, mais de 700 mil documentos confidenciais sobre as guerras do Iraque e do Afeganistão e comunicações do Departamento de Estado. Após sua condenação, sua pena foi perdoada por Barack Obama, e agora ela presta serviços ao Exército Americano (para o qual serviu no Iraque), ajudando a detectar, prevenir e sanar problemas causados por hackers. O legal disso tudo é perceber que o público assistiu ao papo superinteressado na questão da segurança digital, sem nenhum preconceito com a história de vida de Chelsea, nem com o fato de que ela desenvolveu boa parte de seus conhecimentos enquanto esteve presa.
Ainda nesse tema, vale destacar o momento que consideramos o mais divertido e motivador do evento: Priyanka Chopra Jonas é uma bem-sucedida atriz e produtora indiana de Bollywood, que nos últimos dez anos migrou para Hollywood, com o intuito de produzir filmes com alcance global. Entrevistada por Jennifer Salke, head da Amazon Studios, elas discutem as dificuldades e os desafios das mulheres no mercado de entretenimento.
Para entender um pouco a insanidade autodestrutiva do mundo atual, escolhemos, como pano de fundo, o bate-papo entre os coautores do livro The Future Normal, Rohit Bhargava e Henry Coutinho-Mason. O lançamento do livro foi feito no SXSW, quando os dois autores se conheceram. Sim, eles escreveram um livro em parceria, com relacionamento e coworking, sempre a distância, residindo em países distantes e com culturas diferentes! Isso mostra o mundo maluco em que vivemos. A dupla não nega a insanidade do mundo atual, com luta das minorias por um espaço de voz, destruição suicida do meio ambiente, guerras que destroem a cadeia global de suprimentos, fim da privacidade, fake news, crises econômicas por todo o globo, inflação etc.
Ambos se apresentam como near futurists: procuram olhar à sua volta e identificar novas possibilidades com base na tecnologia e em circunstâncias disponíveis, visando garantir nossa sobrevivência num futuro próximo.
Assim, abordam temas como produção sintética de proteína animal por engenharia genética. O tema foi assunto de outra palestra do SXSW, com foco em uma fábrica de Cingapura, onde a produção é baseada em amostras animais reproduzidas geneticamente. A dupla ainda fala de material sintético e biodegradável para vestuário e também o que podemos fazer para preservar o que nos resta do meio ambiente. Ou seja, o normal futuro é se preocupar a cada dia com as consequências de nossas ações de hoje na vida de nossos filhos amanhã.
Ainda nesse tema, destacamos a palestra de abertura do festival, com Simran Jeet Singh, diretor-executivo do programa de religião e sociedade do Aspen Institute, que recentemente lançou o livro The Light We Give: How Sikh Wisdom Can Transform Your Life, em que aborda os desafios de crescer no Texas, sendo um sikh e tendo de conviver com episódios constantes de intolerância e racismo.
“Como encontramos luz quando tudo parece perdido? Como amamos pessoas que não nos amam? Como encontramos a humanidade de pessoas que não se importam? São perguntas difíceis, e não é algo para o qual nossa sociedade esteja fazendo um bom trabalho para descobrir”, questiona Singh, em seu discurso encorajador e emotivo.
Quando começamos a varrer o imenso bloco de eventos relacionados à inteligência artificial, as escolhas ficaram bem difíceis. O tema permeia a maioria das discussões, com dezenas de conteúdos sobre o assunto. Optamos pelo óbvio: ouvir Greg Brockman, CEO do ChatGPT, que popularizou o tema IA de forma arrasadora desde novembro de 2022. Em sua entrevista, nos preparou para novas surpresas e lembrou que as mudanças vão ser sentidas em todos os aspectos de nossa vida diária.
A entrevistadora Laurie Segall, da Dot Dot Dot Media, foi um destaque à parte, bem como muitos outros mediadores e entrevistadores que, ao longo do evento, demonstraram ter um excelente preparo.
Brockman focou principalmente em aspectos não técnicos da IA que nos impactam diretamente, tais como questões éticas que vêm com a tecnologia. Como desenvolver a capacidade de julgamento dos profissionais? Como migrar os produtores de conteúdo para gestores e modeladores de conteúdo? Como lidar com as deep fakes?
A seu ver, as soft skills são hoje ainda mais essenciais para a preservação de empregos. Trata-se de um upgrade das competências atuais para as competências powered by AI. Um ponto de sua entrevista chama a atenção: Brockman revela que uma das maiores prioridades da OpenAI é contratar filósofos para melhorar a capacidade de julgamento dos engenheiros de prompt, uma nova profissão para os especialistas no uso das plataformas de IA, já que a maioria delas permite a comunicação em linguagem natural.
O modelo two-tier da OpenAI também é muito inovador. No tier 1, o propósito da empresa é ser open source, oferecendo sua tecnologia ao mundo, com o objetivo de melhorar o conforto da humanidade. Mas, no tier 2, por meio de parcerias tecnológicas, por exemplo, com a Microsoft, a empresa visa a lucros e obtém capital para subsidiar o tier 1. Só a Microsoft já investiu perto de US$ 40 bilhões na OpenAI!
E, para fechar, não poderíamos deixar de sugerir a entrevista de Amy Webb, CEO do Future Today Institute (FTI). O FTI produz anualmente sua aguardada edição do Tech Trends Report (está na 16ª edição), tradicionalmente apresentado ao público no SXSW. A edição deste ano tem 820 páginas, para abordar 666 trends. Felizmente, existe uma versão no formato de executive summary. Vale muito a pena baixar esse report, gratuito, acessível no site do FTI.
Mas, se você chegou até aqui neste longo resumo do SXSW 2023, sugiro que não pare ainda. Monte o seu próprio SXSW no perfil do evento no YouTube. Você vai aprender e se divertir muito!